amélia, e seus (des)amores
#5 tudo era experimento em favor do outro, o amor esse bicho arredio que precisava ser manipulado e forçado a se render.
Amélia tinha o rosto marcado por espinhas e uma predisposição natural aos bastidores. Seu nome não era mencionada nas listas de garotas bonitas nem sua atenção era disputada pelos colegas de turma. Era mesmo uma menininha estranha. A tendência a fugir de gente era compartilhada com a melhor amiga Marcela, o que funcionava bem para a dupla, de modo que se bastavam, nas interseções das suas fantasias literárias, e por um tempo essa amizade foi o suficiente para abafar a carência crônica que carregava no peito.
Só que a adolescência recicla as pulsões e, em meio às relações árticas do seu lar, ressurgiu nela a ânsia antiga, redirecionada. Era fome de amor. Houve tão pouca atenção ao seu redor enquanto crescia que aprendeu a dar os olhos livremente. Notava as pessoas, suas palavras, gestos e relações. Atos de amor, declarações apaixonadas, mãos que se encontravam, olhos que se esgueiravam e dançavam, encabulados. Mergulhava em Jane Austen, e dissecava comédias românticas, as mesmas, de novo e de novo. Sentia as entranhas vazias daquilo. Estava segura de que sabia o que era amor, o conceito e a fórmula mágica, quase tão bem quanto sabia o que o amor não era. E se em casa a dispensa estava vazia, teria de perseguir na rua a saciedade.
A primeira tentativa de capturar o afeto se deu na figura do João. Era um menino corpulento e dado à sudorese, filho de pastores neopentecostais. Voltavam da escola no mesmo ônibus. Durante o dia não se falavam, era mesmo como se não se conhecessem, mas no caminho para casa ele puxava conversa, oferecia chiclete e um dos fios do fone de ouvido. Amélia confiou ao João seu primeiro beijo, apressado, destrambelhado, meio escondido na última fileira do busão. Descobriu no dia seguinte que ele tinha anunciado o feito no recreio, dando gargalhadas enquanto contava que a namorada tinha um bigode que espetava durante o beijo. Depois disso passou a fazer movimentos de barbeador sempre que a via passar pelos corredores.
Aos dezesseis perdeu a virgindade para um menino simpático do cursinho de inglês, fingindo o tempo todo que aquela não era sua primeira vez, engolindo a dor incômoda daquela britadeira seca sobre o colchão surrado, porque ele tinha insinuado que seria muito broxante se ela fosse virgem. A atuação não deve ter sido das mais convincentes porque o simpático nunca mais ligou e passou a evitá-la nos corredores do curso.
Foram os primeiros desses desamores, mas certamente não os únicos. A história é que se repetia, a performance vazia, a coreografia de falas e movimentos precisos na perseguição ao alvo. Amélia não procurava entender se nutria sentimentos pelo pretendente da vez, nem questionava se a companhia era agradável ou se o corpo, o seu, se acendia no toque com o outro (nunca). O que importava, o imperativo, era saber se o rapaz da vez, esse desconhecido no qual ela enfiava faltas e expectativas, se ele gostava dela, quais movimentos o agradavam durante a transa, quais insinceras palavras precisava ouvir para escolhê-la.
Tudo era experimento em favor do outro, o amor esse bicho arredio que precisava ser manipulado e forçado a se render. Pressupunha que, se vestisse as roupas certas, se ficasse mais calada, se dissesse as coisas certas, se ingerisse só água por três dias, se não apresentasse ressalvas nem opiniões, se implorasse e se humilhasse, se oferecesse ou preservasse seu corpo, se permitisse que fizessem com ela o que quisessem, eventualmente um deles cederia.
Cada rejeição era um golpe. Cada presa não convencida era a prova de que ela não era merecedora, não tinha valor. Ainda assim, Amélia não desistia. Cansada, esbaforida, seguia carecendo se fazer digna desse amor impossível que para os outros se escancarava e dela escapava e se escondia. Não adiantava, o perseguido não vinha. Cada pequeno abandono reacendia em Amélia o passarinho sem ninho. O mundo inteiro virava noite de tempestade, com trovão e relâmpago, e ela pequena, criança chorosa, queria subir quietinha numa cama gostosa, se enfiar sorrateira no meio do pai e da mãe, receber um abraço caloroso, demorado, ter a certeza de que, desde que aquele lugar existisse, nenhum mal poderia ser eterno. No coração magoado uma cicatriz antiga latejava. Era luto por um passado que não foi dela. Sabia que tinha sido negada algo precioso, chorava de novo e de novo a ausência de um amor que não conheceu.
Tinha sido uma criança demasiadamente adulta, e se tornava uma adulta demasiadamente criança.
Queridas leitoras (e leitores), depois de sete meses intensos, a trancos e barrancos, cheguei aos finalmentes da primeira versão do meu primeiro romance, e o próximo passo é a (interminável) reescrita. Se tiverem indicações de bons leitores críticos, estou à procura :)
RECOMENDAÇÃO LITERÁRIA
Escrita em movimento: Sete princípios do fazer literário
A recomendação hoje é de um livro técnico, pra quem pretende aprimorar a escrita criativa, e aos leitores que desejam melhor entender os nuances que compõem à boa literatura. Noemi Jaffe é um dos maiores nomes Oferece oficinas de escrita ficcional há décadas, e tem um bocado de livros publicados pela Companhia das Letras.
O que me encantou nessa obra é que a professora não “caga” regra, como tenho visto vários profissionais fazerem por aí… Ao contrário, propõe o desenvolvimento de uma voz única, através de um processo muito consciente.
O livro é dividido em sete princípios, e para cada um, após explicações bem tecidas, enriquecidas com exemplos literários diversos, Noemi convida um escritor para oferecer comentários sobre a aplicação daquele princípio. É curtinho, e absurdamente didático. Ter encontrado Noemi no início dessa minha loucura de escrever um livro foi uma sorte abismal, certamente me fez perder menos tempo tateando no escuro.
Como sempre: maravilhoso! Mal posso esperar para ler o seu livro
Caramba que texto maravilhoso