Começo o texto pedindo desculpas. Não consigo ler textos sobre despedidas de animais de estimação, então não vou me ofender se você também não conseguir ler este. Mas preciso escrever o que me habita, que nesse momento é mesmo a tristeza de um luto muito recente.
No mês passado nos despedimos do Thor, golden retriever, ladrão de pães e de cupcakes, amante de meias e de chinelos. Ele tinha quinze anos, uma predisposição a alergias de pele e ocupava, na nossa frágil dinâmica familiar, um papel de afeto e consolo insubstituível.
O Thor veio como um presente, literalmente. Na época o cachorro da família era um basset hound, Beethovem. Temperamental, cheio de pelancas e muito leal, o Bê estava idoso e muito adoecido, tinha convulsões fortes, e nos preparávamos como podíamos para o momento da despedida. Foi quando um paciente, ou talvez um colega médico, não me lembro mais, presenteou minha mãe com um filhote (minha mãe sempre teve essa coisa peculiar de pessoas aleatórias doarem cachorros de raças “caras” pra ela).
Era o ápice da febre dos Vingadores e o Davi, meu irmão, que tinha cinco ou seis anos ( e já ostentava mais personalidade do que a minha versão adolescente), queria dar ao cachorro o nome Hulk, enquanto eu sustentei, sem nenhuma originalidade, que os fios louros nos obrigavam ao codinome Thor. Como irmã mais velha, venci a batalha pelo batismo, e desempenhei, vergonhosamente, meu papel no alargamento da multidão de goldens nórdicos genéricos.
Naquela época a família morava em uma casa grande, de três andares, com quintal, garagem e jardim, em que o filhote logo aprendeu a correr, caçar pombos e enterrar ossos. Tem uma história dessa época que eu adoro. O cachorro mais velho, ranzinza, não demorou para exercer sua má-influência sobre o pupilo e, junto com o Bola (um gato meio-nosso-meio-de-rua inteiro safado), montou-se uma quadrilha. Thor, o detentor da força bruta, ficava em pé nas patas traseiras e abria a porta da cozinha. Bola, o felino, usava das suas habilidades para pular sobre a geladeira e derrubar a sacola cheia de pães que guardávamos ali. Beethovem, a mente por trás do crime, dividia os proveitos sem qualquer justiça: um pão para o golden, todo o resto para o idoso, e zero para o gato (cuja participação se dava pelo simples deleite de cometer o delito).
Eu me lembro de como a presença do Thor mudou tudo. Sim, o Bê morreu, mas graças ao novato, os últimos meses dele foram leves, cheios de furtos, pães, aventuras, amizade. Desde aquele início, ele já era o nosso consolador. Pelo tempo em que morou naquela casa, o Thor se deitava todas as tardes no jardim, bem em cima do pedaço de terra onde o Beethovem tinha sido enterrado.
Nosso companheiro chegou em uma casa grande, como integrante de uma família completa. Não demorou, entretanto, para que o divórcio chegasse, para que minha mãe tivesse que abandonar o lar que deu a vida para construir, para que o mundo virasse de ponta cabeça, e a gente tivesse que se adaptar aos metros quadrados do apartamento, a sermos só nós por nós, eu, minha mãe e o Davi. E o Thor, que agora não tinha mais garagem, jardim, pombo nem quintal. O que o Thor tinha era uma família quebrada e um apartamento no quarto andar, com uma varanda minúscula e uma vizinha jack russel de nome Capitu.
Com ou sem casa, ele não deixou de cuidar da gente. Parecia sentir quando algum de nós sofria, e sabia sempre o que cada um precisava para parar de doer. Foi a distração do meu irmão durante o caos, e também o seu primeiro amigo. Quando minha mãe adoeceu, me acordava toda vez que ela passava mal de madrugada. Durante as minhas crises de ansiedade, ele deitava a cabeçona amarela no meu ombro e encostava o corpão quente no meu. Era meu maior companheiro e também meu ansiolítico mais eficaz.
Os anos passaram e logo a vida exigiu dele mais uma mudança, dessa vez para Uberlândia, durante a pandemia. O Thor perdeu mais espaço, e isso nos doeu a todos. Aos poucos a pelagem do focinho foi sendo invadida por tons de branco, o andar foi se tornando mais lento, as juntas mais doloridas. O que permaneceu igual foi o modo como ele fazia sombra a cada passo que minha mãe dava, o sorriso que ele mantinha sempre na feição. Quando a Margot chegou, o idoso foi o professor dela, ensinou todas as coisas erradas, desempenhou o papel que o Beethovem tinha cumprido lá atrás.
Mês passado o nosso Thor descansou.
Eu estava em Florianópolis, acompanhando meu marido em uma viagem de trabalho, e não pude me despedir. Naquele dia, enquanto o adeus acontecia, me sentei na areia da praia e chorei ali por algumas horas, me sentindo a criança mais sozinha do mundo. Sei que meu irmão custou a desfazer o abraço apertado sobre o corpo peludo e que minha mãe disse todas as coisas que precisava que ele soubesse. Sei também que palavra alguma, muito menos essas, será suficiente para transmitir o tamanho do que ele significou, e significa ainda, para a nossa família quebrada.
Thor, meu amigo, meu protetor, meu irmão, obrigada por ter esperado o Davi crescer.
Obrigada por ter cuidado da minha mãe, todas as noites, por todos os seus anos.
Obrigada por também ter cuidado de mim.
Obrigada por nos amar, e por perdoar as nossas limitações.
Ao menos, eu espero que você as tenha perdoado.
Não consigo seguir lendo.
Eu sinto muito pela perda de Thor.
Chorei, sinto muito pela sua perda