vou morrer lagarta
não importa quanto tempo eu fique no casulo, o quanto eu mexo e remexo e mude e me mude, nada me faz borboleta.
Amigos, confesso que o texto de hoje não tem o frescor habitual; foi escrito em novembro do ano passado. Envio-o excepcionalmente porque, além dos infortúnios e desarranjos da semana, fui acometida por uma Gripe daquelas, assim com G maiúsculo mesmo. Para não quebrar o compromisso quinzenal, recorri a essa pequena trapaça, que certamente incomoda a mim mais do que a vocês.
Passei a vida inteira a perseguindo. Estendo os braços e quase posso tocá-la. Sei seu cheiro, suas palavras, quão macia é a sua pele, que roupas ela veste, como pensa e até quanto pesa. Se eu tentasse um pouco mais, se me esforçasse só um pouco mais, eu a alcançaria. Eu a persigo há tanto tempo, essa versão inatingível de mim, que ela quase-existe, em uma quase-existência tão material que é o suficiente para me convencer que a inexistência dela é culpa minha, fraqueza minha. Enquanto não a apanho, continuo sendo essa versão incompleta, projeto inacabado de mim mesma, em uma luta constante pra me encaixar, pra me fazer caber sabendo que se eu fosse ela haveria espaço nesse mundo para mim. Porque ela é o tipo de pessoa que o mundo se remodela para acomodar.
Ela tem amigos, sai de casa, ri e sua risada é alta, contagiante. É boa nos esportes, lê todos os clássicos, discute política, história, filosofia. Ela faz conta de cabeça e nunca precisa conferir se realmente trancou o carro. Tem boa relação com a comida e o espelho. É uma profissional respeitada, mas não precisa ser distante ou rígida. É gentil e não há fraqueza nisso. Quando fala, os outros escutam. Nunca se irrita nem se abala. Acorda às seis da manhã, com facilidade e disposição. Raramente tem dor de cabeça ou ombros tensos. Sabe a coisa certa a dizer para consolar alguém e raramente precisa de consolo. Não pensa antes de cada palavra dita, e nem se arrepende do que fala. Perdoa todas as ofensas. Não tem mágoas, traumas nem cicatrizes. Exala aquela leveza, insustentável.
Essa ideia-mulher me tenta, me acusa do que eu quase sou. Diz que os seus sapatos seriam meus se eu apenas tentasse. Há dias em que quase consigo. Acordo cedo, choro na terapia, levanto pesos na academia, performo em reuniões, respondo rios de e-mails, me embriago da dopamina que só o riscar de itens na lista de tarefas proporciona e chego em casa a tempo de jantar em silêncio com meu marido enquanto assistimos vidrados a série distópica da vez. Mas, ao deitar, me lembro que extrapolei nas calorias, levei outro grito no trabalho, ignorei aquela mensagem e não levei o carro pra revisão. Ah, mas se eu me esforçasse de verdade, se eu fosse mais forte, se eu tivesse mais disciplina…
Certa vez, quando eu era criança, encontrei um casulo e passei dias e dias a fio encarando aquele negócio, esperando a transformação prometida, impaciente pela demora daquela lagarta. Por que é que não virava logo borboleta? Na minha cabeça é assim: em todo lugar que eu chego se decepcionam quando constatam que continuo lagarta. Ninguém diz, mas eu sei, eu sinto, estão esperando que a borboleta apareça, e sem graça, sem jeito, envergonhada até, eu sussurro baixinho, espera só para vocês verem, no dia que eu quiser eu viro borboleta. Só que o negócio é que eu quero, mais do que tudo, ser borboleta. E a cada vez que eu me descubro lagarta, percebo ainda mais intransponíveis as barreira entre o que eu sou e o que eu poderia ser. Não importa quanto tempo eu fique no casulo, o quanto eu mexo e remexo e mude e me mude, nada me faz borboleta.
Vou morrer lagarta e vou ter passado a vida inteira tentando ser o que não sou.
Recomendação literária
Me encantei com a leitura de “Oração para Desaparecer”, da Socorro Acioli, escritora brasileira que bebe da fonte de Gabriel García Márquez sem sacrificar sua voz, única.
Para a construção da narrativa, a escritora parte de um fato real e curioso: no final do século XIX, em um município cearense que é também território dos povos originários da etnia Tremembé, uma igreja é soterrada pela areia e gera movimentações da arquidiocese e população local. Após 45 anos, o banco de areia se move e a construção ressurge, alvenaria intacta.
A história de realismo-mágico se desenrola em menos de 200 páginas e tem início quando a personagem principal, brasileira, é desenterrada viva por estranhos misteriosos em uma pequena vila de Portugal, sem lembranças do seu nome ou passado. Os segredos e descobertas que envolvem não só o renascimento e a vida-antiga da nossa personagem, mas também os dons sobrenaturais que ela carrega, são revelados aos poucos, em três partes. A primeira é bem caótica, assim como o estado mental da ressurrecta. Aos poucos tudo se conecta, e senti que a leitura fluiu bem mais do meio para o final. Enfim, o livro é um mar de ensinamentos, prosa poética, homenagens aos povos originários e trata da conexão brasil-portugal com uma sutileza magistral. <3
"E a cada vez que eu me descubro lagarta"...
Isso em você, tão em mim agora.
Sei que dói e partilho do doer.
Que alegria, porém, poder gritar "somos lagartas eternas!"
Pra mim, é uma libertação. Que sigamos não nos cobrando, mas buscando outras cores e evoluções, outras casas e versões.
Talvez não seja sobre tentar ser quem não somos, mas sobre buscar nos descobrir nesse mar gigantesco que carrega o nome de vida.
A cada dia acordo outra.
Outra lagarta? Que seja! As borboletas são efêmeras, mas as lagartas prometem o mundo! Eu não sei você, mas eu gosto da expectativa do inexplorado, do porvir. Pode ser só uma forma meio sonhadora de romantizar a dor, mas às vezes é preciso certa imaturidade criativa pra conseguirmos ver algo de bom nas falhas, fracassos e frustrações.
Amo seus textos. Que bom que você está aqui :)