o corpo dos corpos
o eterno esculpir violento do mármore que é o corpo
Meu segundo livro, em fase de primeira escrita, já sofreu mudanças drásticas nesses três meses de vida. Depois de mais de dez capítulos escritos, fui convencida pelo querido professor Marcelino à alterar o narrador. Crise, gritos, teto caindo, o mundo desabando. A escrita é madura, as personagens são conduzidas com confiança, e a história hipnotiza. Mas o narrador é chato, cheio de si, conta da dor e não se afunda na dor. Ele estava certo, é claro. Então estou agora chafurdada em dor até os cotovelos, transmutando a criatura, partindo meu narrador em duas vozes de primeira pessoa, e nisso o caminho do livro se abriu, o ritmo nasceu, fluiu.
Encontrei o fio da história, mas nessa brincadeira perdi capítulos, pontos de vista e personagens amadas. A primeira pessoa aproxima, mas também limita. O texto abaixo era um capítulo daquela primeira versão, que precisei aposentar, não sem um luto ainda mal digerido. Trata da exploração do passado de uma personagem coadjuvante, menor mas central para a trama.
Compartilho aqui com alterações, uma gracinha antes de enterrar o defunto, e uma migalha de spoiler sobre alguns dos temas que atravessam esse novo projeto.
O primeiro marido tinha sido para ela uma façanha, conquista de fantasia construída. Se conheceram na faculdade, no que considerava a melhor das épocas, porque estava finalmente mais magra do que a irmã. Quando o rapaz manifestou interesse pelo seu corpo reduzido, Márcia, que cultivava a crença de que seria feliz quando na balança os números fossem outros, confirmou ali cada condicionante do amor dos homens: quão menor é uma mulher, mais chances tem de ser amada.
A gorda. Era como a distinguiam, desde a infância, da irmã. Gêmeas, as meninas guardavam a mesma testa sobeja, o mesmo queixo diminuto, e mesmo o marrom genérico dos olhos se replicava nelas. As sobrancelhas assimétricas pintavam, no rosto de uma, o exato arco irritado que se via na outra, a esquerda em ambas ligeiramente mais alta do que a direita. Da pele parda aos espessos pelos dos braços, a natureza havia copiado o molde do espelho com quase-perfeição. A uma diferença entre Márcia e Martina, desde o ultrassom: o tamanho. Eram como bonecas russas, idênticas, senão pela grandeza. Dizia a mãe que a primeira, glutona, roubara no parto para si o apetite de vida, na afobação esquecera o controle, deixara a virtude para a irmã. Márcia nasceu antes, braços e pernas robustos, um berro grave rasgando o mundo. Martina foi do ventre para a incubadora, e conservou no tempo os membros finos daquela primeira fraqueza.
Crescer ao lado de Martina tinha sido, para Márcia, conviver em comparação constante com o que ela quase-era, e testemunhar, ao mesmo tempo, a reação do mundo a uma outra versão sua, suavizada. Tanto que cedo na vida já era Martina a versão inatingível que Márcia perseguia, e a existência de uma, tão material e presente, era o suficiente para reforçar que qualquer falta na outra era culpa própria, fraqueza mesmo. Márcia assim se convencia de que, enquanto não fosse Martina, continuaria sendo versão incompleta, projeto inacabado de si mesma, numa luta constante para se encaixar, para se fazer caber, sabendo que, se fosse Martina, haveria espaço para ela no mundo. Então a briga com a balança persistia desde a infância, e era o mesmo que a briga com a irmã, que nada mais era do que o espelho.
Na época do vestibular, a escolha do curso, nutrição, foi mais uma declaração de guerra às camadas de gordura, estratégia para cortar fora as partes de si que não cabiam na versão fabricada. Márcia escolheu ser nutricionista porque pensava que ser magra era o tipo de coisa que se podia aprender na sala de aula. Funcionou. De mudança para a capital, foi a faculdade que ofereceu as armas para o auto ataque, introduziu na ponta da língua os termos técnicos que transmutaram corpo em patologia.
Finalmente longe de Martina, Márcia se destacou, fez amigas. Eram colegas de classe e conheciam as táticas milagrosas que os professores escondiam: o cigarro tirava o apetite, o laxante expurgava as toxinas, e as dietas líquidas davam resultados mais depressa. Discutiam planos alimentares, faziam cálculos de IMC, iam juntas à academia e trocavam, entre si, as receitas tarja-preta dos melhores antidepressivos. Elas se pesavam três vezes ao dia, e quando não estavam se pesando, pensavam no momento em que de novo estariam diante da balança. Recortavam, nas revistas, partes dos corpos de mulheres, perseguiam, como Dr. Frankestein, o corpo dos corpos, a criatura perfeita.
Dieta após dieta após dieta, corrida, seguida de séries de abdominal, e mais corrida. Márcia murchou. Os ossos da bacia despontaram, as costelas, sonhadas, escavadas, as bochechas fundas, cadavéricas. O cabelo caía. Ela sentia frio, o tempo todo, e uma fome funda, que cavava a alma, pintava o teto de preto, mas chamava isso de saúde, e quando olhava no espelho, enxergava Martina, como nos sonhos da infância. Quando, de volta à sua cidade, andava na rua, os vizinhos as vezes a chamavam Martina, e ela se satisfazia com isso. Os pais também elogiavam, finalmente tinha aprendido a controlar a boca. Então assim era ser feliz, Márcia maravilhava.
Não demorou para que olhos, como os olhos que costumavam olhar para Martina, pousassem sobre ela. Pedro foi o primeiro namorado e, aos olhos de Márcia, tudo pareceu predestinado, porque, além da faculdade, frequentavam a mesma academia, e compartilhavam o mesmo terror aos carboidratos. Aos poucos, sob a orientação dele, converteu métodos violentos em veneração ao altar da disciplina. LPF, crossfit, calistenia. Eram, na verdade, as mesmas peças, apenas rearranjaras em nova configuração. Compartilhavam uma única raiz: o ódio ao corpo. Mas Pedro dizia que o corpo dela era lindo, e ela pensava que isso era o amor.
Na noite da formatura, ele fez o pedido. Criaram a conta conjunta, alugaram a casa, abriram o consultório. A mãe e o pai aprovaram, a irmã compareceu ao casamento, e as saboneteiras de Márcia despontaram no vestido sem alças. Pela primeira vez, ela não quis ser Martina. Era melhor do que Martina, menor do que Martina. Durante três anos, Márcia cumpriu com o itinerário: o silicone e a dieta, o cabelo escovado, a unha pintada, o perfume borrifado sobre o travesseiro. Atendia pacientes, estudava casos, mantinha a casa, e cuidava ainda das tarefas do consultório. Nos finais de semana, corria em jejum com Pedro na praça, depois ele fazia o churrasco, ela comia a salada. Divertiam-se em comentar os corpos dos amigos de faculdade, como estavam descuidados, deformados, lhes faltava disciplina. E ela por um tempo se esqueceu que costumava ser Márcia, se convenceu que a vida era aquele eterno esculpir violento do mármore que era o corpo.
A gravidez foi o que desmoronou o castelo de areia. A massa muscular, o déficit calórico, o abdômen concavo, cada dura conquista desfeita, o corpo esculpido, perdendo espaço para a essência nova. Enquanto a barriga crescia, os pés inchavam, a fome, há anos ignorada, se fazia saber. O estômago, encurralado pelo útero expandido, exigia ser preenchido. A criatura dentro dela reivindicava o alimento. E ela ansiava nutrir, sentia no fundo do estômago o chamado ancestral do cuidado. De repente ser Martina importava menos, queria mesmo era gerar aquela filha, satisfazê-la. As camadas, pouco a pouco, voltaram aos estimados vales do corpo, cobrindo o árido do solo em vida, na impaciência de exilados que retornam à pátria amada, e encontram-na mutilada.
Os médicos tiraram a menina, viva, saudável, mas a gordura ficou, resistiu, fez casa nela. Na capa da revista, a atriz da vez exibia o tanquinho, dicas infalíveis para perder a barriga no pós-parto. Faça jejum intermitente, beba quatro litros de água, cozinhe os legumes à vapor. Nada que ela não soubesse, de que adianta a cabeça saber se o corpo tem outros planos. A bebê não dormia, não tinha ainda aprendido a dormir, os olhos abertos, resistiam, recusavam o escuro. As noites eram vividas às claras, por Márcia e Manuela. Pedro desorientado, coitado, tão perdido sem ela, com as consultas canceladas, contratou uma secretaria para cuidar dos assuntos do consultório. Faltava tempo para o banho, para o esmalte, e para a escova. O marido reclamava do cheiro de leite, e virava de costas quando a via pelada. Não se borrifava mais perfume sobre o travesseiro nem se corria em jejum no domingo de manhã, e o corpo dela já não se distinguia tanto daqueles que antes julgava. Foi quando ele começou com um tom de conselho, preocupado. Você não está se cuidando, Márcia. Você está se entregando. Você não é só mãe, Márcia, você também é esposa. Fica feio para o consultório. Ela escutava essas coisas todas, e concordava, sentia um asco grosso de si, mas estava também tão cansada, e fugia dos espelhos.
Quando Manuela completou um ano, Márcia matriculou a menina na creche. Era tempo de retornar ao trabalho, mas a secretaria não compartilhava a agenda do consultório. Depois de muito insistir, Márcia desabafou, por que é que essa mulher não marca minhas clientes? Pedro explodiu. Quem vai querer uma nutricionista gorda? Quem vai querer uma esposa gorda? Quem vai querer você, Márcia?
É que os olhos de Pedro já não olhavam para Márcia como se Márcia fosse Martina. Olhavam para Márcia como se, pela primeira vez, enxergassem Márcia, apenas Márcia, todo o tamanho de Márcia. E Márcia de repente era demais para Pedro. Por isso ele saiu de casa, por isso pediu o divórcio, escolheu a secretaria, com seus ombros pontudos, seus dedos alongados, suas bochechas cavadas. Se parece um pouco com Martina, Márcia tinha comentado quando primeiro a conheceu.
Pedro partiu como partem os homens: covardemente.
Vai que você não leu ainda:
o excesso é irmão da falta - um texto propositalmente sem pontuação, sobre irmandades entre palavras (desafio apresentado na oficina literária)
ninguém avisou do vazio - sobre o perigo de parir personagens ficcionais, e o luto que resta quando seca o rio criativo
tempo de morangos - um texto excepcionalmente esperançoso



senti todos os sentimentos possíveis, eu amo como você escreve, quero meu livrinho com uma belíssima assinatura sua <3 maioral
Me deixou sem fôlego!!!!!!
Que narração, Gabi!
Ansiosa para ler seus livros 💜