Do não-saber nasce a escrita. O bote salva-vidas todo feito de letras, palavras remendadas, amarradas umas nas outras. Nessa jangada metafórica me aventuro no mar-mistério, segura de que a ilha me aguarda.
Foi no ano passado que me rendi à coisa sem nome. Era o monstro da escrita, há anos aprisionado nas minhas profundezas geladas. Enfim despertava, faminto. Tudo começou quando me casei em uma cerimônia idílica à beira-mar. O brilho úmido nos mirrados olhos do meu marido, a declamar votos sinceros de uma emoção extasiante perante amigos e familiares. Eu sou, eu sou, eu sou, galopava o batuque dos meus batimentos. Vivi dias e noites de deslumbre cinematográfico.
Eu, que vinha nadando esbaforida em tumultuoso mar aberto desde os cinco anos de idade, demorei pra digerir a terra firme alcançada. O êxtase do resgate foi, no entanto, passageiro. Ao tocar pés descalços no solo suave da ilha prometida, tornei-me uma coisa selvagem, alerta e arredia, enterrando suprimentos para os dias de falta, recusando o alimento abundante.
Dizem que ser amado é ser transformado. O não-dito é que crescer na ausência do amor também nos altera, corrompe até (talvez de maneira irremediável, ainda não sei dizer). Quando o alívio chega, não confiamos nele. Quem viveu sob a sombra da negligência e da violência certamente me entenderá. Cada curva na estrada adiante representa a iminência do despenhadeiro. Para os filhos da falta, o não-amor é um vazio conhecido, um incômodo confortável. Dói, muito, mas é aquela dor-de-macabéa, ignorante de si.
Daí que quando o tal ser-amada me inundou, temi afogamento. Essa água toda não vai caber no meu vazio, justifiquei. Só que, ao contrário da percepção popular, não se morre de amor, e sim da falta dele. A súbita abastança trouxe o medo, avassalador, do retorno da seca. Prepare-se para o inverno, alertou a voz íntima do sobrevivente. Não fomos feitos para a felicidade, o cérebro lembrou o coração.
No entanto, o tempo passou. O selvagem faminto aceitou o alimento, adentrou o abrigo oferecido e esquentou os pés gelados perante a lareira acesa. Mais gente, menos bicho. A barba foi aparada, os cabelos penteados e os ossos das costelas foram cobertos por deliciosas camadas de gordura. Quando o obstáculo da fome é retirado, a dignidade passa a ser possível. Não se esqueça, falamos de fome metafórica (desnutrição de amor).
Só então, amada e alimentada, pés firmes na rocha segura, foi possível encarar a verdade do oceano que me criou. Ela chegava sempre no ápice da noite. A mão esquelética da memória. Rompia a terra fofa do cemitério inconsciente e sussurrava, “é hora de acordar a nossa história”. Onde estavam os pais dessa criança? Ou, por que os pais ferem os filhos? Por que ninguém interveio? Não sei. Do não-saber nasce a escrita. O bote salva-vidas todo feito de letras, palavras remendadas, amarradas umas nas outras. Nessa jangada metafórica me aventuro no mar-mistério, segura de que a ilha me aguarda.
Existe abrigo para o qual retornar. Sou amada, e isso muda tudo.
Escrever é sempre a primeira aventura, o salto no escuro de si, a mão estendida que toca o desconhecido. Entre escrever e ser lida existe um abismo assustador, mas não intransponível. Nesse espaço, meu desejo é começar a tatear esse outro universo, do encontro com o outro.
A cada duas semanas nos encontraremos para trocar desabafos, mergulhos de alma e sugestões de leitura. Prometo periodicidade, confissões sinceras e uma dose de lucidez para cada dois devaneios.
Que bom te encontrar por aqui! Fica à vontade, a casa é sua. Aceita um cafézinho ou, quem sabe, um chá de camomila?
Aos poucos vamos fazendo desse espaço um cantinho todo nosso. A cada duas semanas nos encontramos para trocar desabafos, mergulhos de alma e sugestões de leitura.
Prometo periodicidade, confissões sinceras e uma dose de lucidez para cada dois devaneios. Vem comigo?
Acho que escrever é o salto para a claridade de si. Não escrever é manter-se encolhido no escuro.
Que texto lindo, Gabi! Fiquei maravilha e com os olhos mareando de momento em momento. Muita coisa explícita e subtendida me tocou nesse texto. Amei, realmente.