Eu não acredito em mercúrio retrógado. Mas não tenho como negar que esse mês foi intenso, pesado mesmo. Logo na primeira semana bateram no meu carro, às seis da manhã de uma segunda-feira. Em seguida veio uma carreira de imbróglios familiares, questões de saúde, voos cheios de gatilhos (gerados pela queda daquele avião), e a partida inesperada do Thor, nosso golden retriever companheiro, que descansou aos quinze anos. Não bastasse, teve ainda o fogo, derramando rápido pela terra, cobrindo tudo em fumaça e fuligem.
No meio desse caos todo, eu terminei o meu livro. Ou melhor, a primeira versão do meu livro. Me agarrei à história como um bote salva-vidas, e lancei todo o meu hiper-foco na missão de chegar ao outro lado do rio. Finalmente agosto acabou, e com ele o período de oito meses de gestação dessa história. O texto que me impediu de afogar vai agora ser desvelado por olhos atentos de amigas, e também de uma revisora crítica.
Toda essa cacofonia das últimas semanas me fez pensar sobre a minha relação com as histórias, e como ela se alterou ao longo do tempo. Muito antes da escrita, havia a leitura. Comecei a ler aos cinco anos. Primeiro gibis da Turma da Mônica, depois a coleção do Sítio do Picapau Amarelo, e daí para qualquer coisa que eu pudesse colocar as mãos. Qualquer coisa mesmo. Desde Crônicas de Nárnia até cartilhas da escola, apostilas médicas da minha mãe, e edições do Estado de Minas e da Veja, que eu lia assim que o entregador catapultava cedo de manhã pelo muro de casa. Nos verões na casa dos meus avós, sem internet nem canal fechado na TV, eu devorava em quatro semanas tudo que a minha avó tinha acumulado em leitura durante o ano (se existia naquela época uma coisa chamada classificação indicativa, ninguém me avisou). Uma das nossas brigas mais recorrentes era justamente a minha insistência em levar o livro debaixo do braço para a praia, o restaurante, a casa dos outros, a festa de ano novo. Desde aqueles dias, a literatura já me era um escudo para o mundo, a bolha isolante que protegia o bicho acuado.
Mas escrever, pelo menos na minha experiência, não tem nada a ver com esse ocultar que a leitura proporciona. O bicho da escrita despertou em mim na pré-adolescência, junto com o primeiro amor não correspondido, as turbulências de uma casa instável, e a sensação de abandono que nem a companhia do livro podia tapar. Meus primeiros rabiscos foram espasmos de dor, poesias que saiam toscas, em jatos. Era o ímpeto de fazer caber em palavras o mal-estar de existir, de colocar para fora a coisa presa, dar nome ao inominável. Escrever era, e é ainda, catártico, intenso.
Quando escrevo descubro partes minhas - pela dor - que eu não sabia que existiam.
Ana Suy - Não pise no meu vazio
Só que a vida aconteceu, o vazio cavou mais fundo, e a coragem de olhar nos olhos dos meus demônios atrofiou. Aprendi a engolir a ânsia de vomitar as palavras, o medo de sentir as coisas era maior (aquela coisa de “quanto mais se olha para o abismo, mais ele olha para você”). A vontade estava lá, mas fugi por muitos anos (dez, para ser exata). Mantive o monstro em cativeiro, sedado durante a faculdade em álcool, remédios e desamores, depois enterrado em cargas absurdas de trabalho. Em 2021, li mais de 90 livros, quase todos de fantasia. Não tenho ideia de quantas garrafas de vinho bebi, mas sei que foram muitas. Esse foi o mesmo ano em que trabalhei, em média, doze horas por dia. Não era amor à literatura. Nem um consumo social e divertido. Era puro escapismo, uma compulsão desenfreada de fugir de uma realidade adoecida.
Foi só quando veio o burnout, quando o corpo ultrapassou o limite e a mente acendeu a luz de emergência, que eu entendi que fugir de mim não ia me salvar. Tive que reaprender a habitar os meus pensamentos, conviver com a angústia e experimentar o mundo através dos sentidos. Depois de cinco anos morando em Uberlândia, descobri como fazer o caminho de casa até a terapia sem olhar o trajeto no aplicativo. Almocei com meu marido sem responder mensagens de trabalho. Assisti um filme sem rolar o feed ao mesmo tempo. Fiquei em pé na fila do mercado sem abrir o kindle. Deixei de fazer do álcool um hábito. Li por prazer às histórias bem-contadas, e não mais por não suportar o peso da realidade. Parece pouco, mas para mim foi muito. E mesmo sem tudo isso, a minha mente ainda vaga, escapa, existe um abismo entre ação e pensamento que preciso me esforçar em percorrer. Estar presente me é custoso, fatigante mesmo.
Aí é que entra, para mim, a escrita, o mergulho no escuro das entranhas, a mão estendida que toca o desconhecido. Enquanto a leitura abre portas e revela outras vidas, o ato de escrever escancara o conteúdo da alma, me chafurda até os cotovelos na incongruência do eu.
Só quando consegui suportar o peso da minha pele, é que foi possível conviver com o desconforto tempo o suficiente para materializá-lo em palavras. É o maior aterramento que eu conheço. Mesmo quando criamos histórias, inventamos narrativas, partimos de nós, da nossa visão do mundo, da mensagem que, para nós, é tão essencial que precisa ser gritada ao abismo do outro.
Ter conseguido me manter fiel à jangada, mesmo em um mês turbulento como esse, me mostra o quanto eu cresci desde que me comprometi ao monstro e às histórias. É a prova-viva da reforma íntima que a escrita causa em mim.
Nada mais me tira a coragem de ser vulnerável, nem mesmo mercúrio retrógado.
Íris Azul
Agora que estou livre para ser eu mesma, quem sou eu?
Não posso voar, não posso correr e veja como caminho devagar.
Bem, acho que posso ler livros.
"O que você está fazendo?"grita a mosca de cabeça verde enquanto zumbindo passa.
Fecho o livro.
Bem, eu posso escrever palavras, como estas, suavemente.
"O que você está fazendo?" sussurra o vento, pausando em um monte bem do lado de fora da janela.
Me dê um pouco de tempo, eu digo de volta para o seu rosto prateado e atento. Isso não acontece de repente, sabe.
"Não acontece?" diz o vento, e se rompe, liberando a destilação de uma íris azul.
E meu coração se apavora por não ser, como eu desejo ser, o receptáculo vazio, expectante, puro e sem palavras.
- Mary Oliver, do seu livro de poemas, Blue Iris.
“Enquanto a leitura abre portas e revela outras vidas, o ato de escrever escancara o conteúdo da alma, me chafurda até os cotovelos na incongruência do eu.” UAAAU! Que escrita cheia de sentimento! Amei muito!
“Nada mais me tira a coragem de ser vulnerável”
Isso aqui bateu forte aqui. Bem forte.
É quase contra-intuitivo lembrar que tornar-se vulnerável é um ato da máxima coragem.
Parabéns pelo texto, adorei! ✨