Já há algum tempo tenho remoído a teoria de que a infância não acaba. Ao contrário, permanece. Contamina o restante da vida como uma lente irretirável através da qual estamos fadados a experimentar o mundo.
Sim, com o passar dos anos acrescentamos outras camadas, perspectivas que se somam e concedem à existência um caleidoscópio de dimensões. No entanto, não posso deixar de suspeitar que, por detrás da fluidez da vida nova, no cerne duro do ser, persiste aquela primeira dor infantil, fôrma e fogo em que se forja a autenticidade de quem se é.
Mas o que fazer quando esse núcleo acumula traumas? Como se despir dessa coisa estacionária que se recolhe e reage mal ao mundo?
Henry David Thoreau escreveu que “o custo de uma coisa é a quantidade de vida gasta em troca daquilo, imediatamente ou a longo prazo”. Se ele estiver certo, aqueles anos me custaram muito. Estão ainda dentro de mim, reverberam.
Essa infância que não acaba é o motivo pelo qual eu me sinto mais segura quando estou sozinha. É o efeito dela em mim que causa ataques de pânico quando tudo anda bem, o cérebro tão treinado a alertar que as coisas boas se vão a qualquer momento e o teto está eternamente prestes a cair sobre a minha cabeça. Eu carrego no peito uma menina que conhece a violência, e hoje sei o por que dela se maltratar tanto, buscar refúgio em livros, e só suportar interações com o mundo em doses homeopáticas.
Não há como matar a memória da criança. Sei disso porque tenho tentado. Esse desamor que me segurou nos braços nunca vai embora, é preciso aceitar. Não é dizer que não pode haver o riso. O leve aprende a conviver com a ferida. Quanto mais a vida adulta coleciona ternuras, esse vazio, que não some, parece em perspectiva encolher (não é que diminua propriamente, e sim que a presença do presente torna o passado menos latente). É a balança da vida que se inclina, vagarosa.
Dar o que se recebeu, seja bom ou ruim, é fácil, um caminho já tão traçado que se percorre de olhos fechados no escuro. Difícil é, tendo guardado a mágoa, se desdobrar, se recompor, se reinventar a ponto de dar luz à luz. Se deparar com a beleza em lugares bonitos é esperado, ordinário até, mas plantar a beleza no solo escuro do inconsciente é acreditar no sussurro do desconhecido. É a primeira gota de esperança no oceano de desamparo. Não muda nada, mas transforma tudo.
O livro que eu estou escrevendo fala um pouco sobre isso. Ou, melhor dizendo, é uma tentativa de.
Não é exatamente autobiográfico, embora a narradora beba da minha fonte para costurar os fios intricados que unem três gerações de mulheres. O projeto veio ao mundo no final do ano passado, quando eu me deparava com aquela mão da memória, já citada na nossa primeira newsletter.
No momento estamos meio brigadas, a história e eu. Depois de mais de cento e trinta páginas, bem no desfecho da trama, ela resolveu se esconder. Estou tentando a paciência, preciso acreditar que logo mais ela volta. Temos ainda muito a sublimar.
(O texto de hoje é pra me lembrar de onde nasce a necessidade de contar essa história.)
Preciso tornar útil em mim essa infância que insiste.
Recomendação literária
Se o texto de hoje tiver sido melancólico demais, me perdoem. É provável que seja culpa desse livro que estou lendo. Não terminei ainda porque foi preciso beber essa obra-prima de José Mauro de Vasconcelos em doses homeopáticas, a dor do Zezé doeu num lugar muito próximo da minha.
O Meu Pé de Laranja Lima é um clássico da literatura brasileira, com mais de 2 milhões de exemplares vendidos, traduzido em 15 idiomas e publicado em 23 países.
O que mais me impressionou nele foi a forma como o autor consegue nos apresentar em cenas uma falta tão funda (de carinho, de dinheiro, de paciência, de amor…) ao mesmo tempo em que revela o que há de mais tenro e humano em nós.
O Zezé mora no Rio de Janeiro, é filho de um pai desempregado e uma mãe exausta que trabalha de sol a sol para bancar a casa. Tem cinco anos, muitos irmãos e seu melhor amigo é um pé de laranja lima. A história desenha essa mistura de tristeza e alegria, solidão e amizade. É lindo, e doído.
Como sempre uma leitura incrível! Mal posso esperar para ler o seu livro!!!!
Ai, Gabi, um melhor que outro. Já quero ler seu livro 💛